Idosos usam aposentadoria para comprar pedras e padecem sem tratamento especializado
Os quatro netos de Antônio, de 66 anos, não podem visitá-lo em seu barracão, em Contagem, na Região Metropolitana de Belo Horizonte. No imóvel, as crianças também não poderiam tomar nem sequer um leite quente. O fogão do avô foi vendido, assim como os móveis, as roupas e até o chuveiro elétrico. Antônio trocou todos os pertences por algumas pedras e um cachimbo. "A casa do meu pai é uma verdadeira cracolândia. Não posso levar os netos dele até lá", desabafa o filho Fábio(*), de 36 anos. Ele é o único da família que ainda frequenta a moradia, onde prostitutas, usuários e traficantes de drogas transitam diariamente.
A história de Antônio ilustra a chegada do crack à terceira idade. Especialistas dizem que os idosos têm recorrido à droga à procura de uma nova forma de prazer e para superar dificuldades típicas da velhice. Afirmam que a maioria custeia o vício com a aposentadoria e chega até a fazer empréstimos bancários para isso. Alertam também que as redes de saúde pública e privada não estão preparadas para identificar e tratar dependentes químicos com mais de 60 anos de idade.
O fenômeno é relativamente novo, mas já era mais do que esperado, diz a professora de Enfermagem Psiquiátrica da Universidade de São Paulo (USP) de Ribeirão Preto, Sandra Pillon. "Como a expectativa de vida no país está crescendo, aumenta também o número de usuários nessa faixa etária", analisa. No Brasil, vivem 21 milhões de idosos, o equivalente a 11% da população, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Marcos se livrou do vício, mas ainda paga dívida de R$ 4 mil que bancou a dependência (Foto: Carlos Roberto)
Não há estudos de saúde pública sobre a quantidade e o perfil dos usuários de crack sexagenários. Em Minas Gerais, por exemplo, o assunto é tratado como incipiente pela Subsecretaria Antidrogas do Estado. Por meio da assessoria de imprensa, a subsecretaria informou que não poderia se posicionar sobre o assunto por falta de informações.
Já o presidente do Conselho Estadual do Idoso, Felipe Willer, vê como alarmante o crescimento do número de dependentes químicos com 60 anos ou mais. "Desde o começo do ano, recebemos denúncias de várias partes do Estado sobre o problema", relata. Willer revela que comunicou o fato à Subsecretaria Antidrogas de Minas. "Fui à procura do subsecretário, Cloves Benevides, para a gente pensar em umas palestras ou em campanhas que ajudem na prevenção ao uso de drogas entre idosos", diz.
Como não há estatística sobre o assunto no Brasil, Sandra Pillon se baseia em pesquisas internacionais para comprovar a chegada das pedras à terceira idade. "Estima-se que os idosos representem até 20% dos dependentes químicos na sociedade mundial", informa.
Sandra realizou uma pesquisa com 191 idosos que procuraram o Centro de Atenção Psicossocial de Álcool e outras Drogas, entre 1996 e 2009, em Ribeirão Preto. O estudo, publicado em 2010, revelou que 86% deles são aposentados e que as drogas ilícitas de maior uso são, respectivamente, o crack, a cocaína e a maconha.
Fila com atendimento preferencial
Nas bocas de fumo de Belo Horizonte, idosos chegam a ter preferência na fila para a compra de crack. Como em hospitais e bancos, os mais velhos podem passar na frente para retirar o "produto". "Os traficantes os chamam para o começo da fila ou os usuários cedem espaço", diz uma fonte.
O Hoje em Dia acompanhou a formação da fila em um ponto da Pedreira Prado Lopes, a "cracolândia" de BH, e flagrou cerca de 20 idosos sendo contemplados pelo "atendimento preferencial". No local, havia aproximadamente cem usuários. Ou seja, uma média de um idoso para cada cinco compradores de droga.
O funcionário público Marcos, de 64 anos, conta que chegou a comprar crack na mesma boca de fumo visitada pela equipe do Hoje em Dia . Há quatro anos, ele usou pela primeira vez a droga, levado por amigos. Com o tempo, passou a buscar as pedras sozinho. "Eu me tornei escravo do crack. Me sentia completamente incapaz frente a essa droga".
Fábio é o único parente que ainda frequenta a casa do pai, viciado em crack: visita dos netos foi proibida (Foto: Frederico Haikal)
Marcos chegou a passar 72 horas em claro, por conta dos efeitos do tóxico. "Não dormia nem comia. Fiquei muito magro na época", lembra. Para bancar o crack, o servidor público chegou a tomar empréstimos bancários. Depois de passar seis meses no Centro de Reabilitação Especializado em Dependência Química (Credeq), se livrou do vício. Mas ainda tem que pagar R$ 4 mil em dívidas.
Como a maioria dos usuários idosos recebe aposentadoria ou tem alguma renda fixa, consegue esconder por mais tempo o vício dos parentes, diz o coordenador do Credeq em Sabará, Valtencir Souza. "Eles têm dinheiro. Não precisam pedir emprestado à família ou vender objetos". A pesquisadora da USP Sandra Pillon confirma a situação. "Com a aposentadoria, eles têm também tempo disponível, o que facilita o consumo de drogas".
Diferentemente dos jovens, os moradores de rua idosos não são os maiores consumidores de crack. A afirmação é do coordenador do Centro de Referência da População de Rua em Belo Horizonte, Luis Aloísio. "Primeiro, porque a maioria não sobrevive até os 60 anos. E, segundo, porque eles não têm dinheiro para comprar".
Um problema subestimado
O sistema de saúde no Brasil é deficiente tanto na prevenção quanto no tratamento de idosos usuários de álcool e drogas, afirma a professora da USP Sandra Pillon.
A fragilidade dos registros durante uma simples triagem médica é uma das críticas da pesquisadora. "Os profissionais costumam não questionar se o idoso é usuário ou não de drogas", cita. Para ela, o ideal seria que os funcionários fossem capacitados para detectar os hábitos de qualquer paciente, seja qual for a idade. "Não pode existir esse pressuposto de que uma pessoa maior de 60 anos não usa crack ou cocaína".
Além dessa falha no primeiro contato com o dependente químico, são poucas as instituições que oferecem tratamento adequado para pessoas com mais de 60 anos. Quando procurou se internar, o funcionário público Marcos, de 64 anos, não foi aceito em diversas unidades terapêuticas, inclusive particulares. "Eles diziam que não havia médico para tratar dessa idade", relata.
Por duas vezes, o filho de Antônio tentou interná-lo. Em uma delas, o pai de Fábio ficou apenas quatro dias. O filho conta que no lugar não havia profissionais que pudessem ajudar na locomoção do paciente, na época com 65 anos. "À noite, eles não tinham fraldas geriátricas para colocar no meu pai. E ele acabava passando uma situação humilhante na frente dos outros internos.
No portal da internet da Secretaria de Defesa Social de Minas Gerais (Seds), são listadas 31 instituições da rede de suporte aos dependentes químicos. Em apenas 30% delas, pessoas com mais de 59 anos são aceitas. "Infelizmente, a probabilidade de o hospital recusar o idoso é muito grande", comenta a professora da USP.
Sandra Pillon explica que este público deve receber tratamento diferenciado, com a presença de médicos geriatras ou enfermeiros especializados, uma vez que os usuários nessa idade estão mais propensos a sofrer derrames, infartos ou quedas. "Eles podem ainda sentir tremores ou convulsões, em casos de abstinência", completa.
Trauma e depressão, dois caminhos para o vício
Tanto Antônio como Marcos foram usuários de drogas quase que a vida inteira. Desde adolescentes, os dois consumiam maconha e álcool. Depois, passaram para a cocaína e na terceira idade debandaram para o crack. "Que é a droga mais traiçoeira. Foi aí que perdi o domínio total da minha vida", diz Marcos.
Sandra Pillon afirma que esses dois idosos retratam bem um dos grupos de dependentes químicos com idade superior a 60 anos: aqueles que fazem uso continuado de drogas.
O outro grupo que tem despontado na sociedade é o de pessoas que partem para o vício perto do 60º aniversário ou em consequência de um conflito traumático. "Quando chegam na terceira idade, muitos deles apresentam sinais de depressão", explica o presidente do Conselho Estadual do Idoso, Felipe Willer.
Foi assim que se sentiu o marido de aposentada Fernanda, de 58 anos. "Ele conta que começou a usar cocaína porque não conseguia emprego por causa da idade. E estava também com vários problemas na família. A mãe sofria de Mal de Alzheimer. Ele não tinha convívio com os filhos e nem conversava com os irmãos", descreve.
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